Sicília e Sardenha: uma viagem gastronômica pelas blue zones

O chef Renato Caleffi e o publicitário Alexandre Carvalho foram à Sicília e à Sardenha em busca dos segredos que fazem da população dessas ilhas uma das mais saudáveis, longevas e fascinantes do planeta. 

Levanzo: a menor das três principais ilhas Égadi no mar Mediterrâneo a oeste da Sicília, Itália.

Vivemos em uma época onde sabemos que vamos viver mais. Por outro lado, precisamos aprender a conviver com isso. Talvez um bom começo seja observar o legado e hábitos de vida de algumas culturas do que se prender simplesmente às inovações tecnológicas e científicas do mundo contemporâneo. É o que estamos investigando desde 2015. Um chef de cozinha e um publicitário, ávidos pelo comer autêntico, isto é, por comer bem e saudável, comida de origem, alimento de verdade, com baixíssimo ou zero processamento industrial.

Em nossas viagens, o alimento reina muito mais pelos seus atributos do que por um excesso de superproduções estreladas.

Nunca é comida anônima, comida de fast-food; é sempre aquele prato à sua frente que contém as impressões digitais do humano que a elaborou, seja ele um cozinheiro ou um produtor de azeites orgânicos, (e até pode ser uma porção de mortadela tartufada). Onde entram a Sicília e a Sardenha nisso? Em tudo.

Bem-vindo a uma das mais fascinantes blue zones do planeta, uma das regiões do mundo onde as pessoas vivem muito mais e com uma saúde de invejar os seus avós. Pessoas centenárias ativas e saudáveis, que possuem algumas características em comum, desde adotar um estilo de vida extremamente ativo (muitos cultivam a própria horta, o próprio azeite e vinho), ter um senso de comunidade e família (na casa onde moramos na Sardenha vimos 3 gerações diferentes convivendo juntas e bem, e não só à mesa) e valorizar mais o que a terra dá do que o supermercado expõe e vende na prateleira.

 

Coma mortadela com gotas de limão siciliano, pistache e peperoncino no Il Gusto dei Sapori Smarriti, em Ortigia, onde vivenciamos o melhor da hospitalidade siracusana.

 

Nosso roteiro ocupou-se de mais de 15 cidades, burgos e vilarejos visitados, 2.000 km de trecho percorrido somente na Sicília, mais 1.000 km pela costa ao norte da Sardenha, a elegante Costa Esmeralda.

Sim, esta é uma região glamourosa. Mas não foi isso o que nos pegou. Em vez dos milionários iates flutuando sobre a própria sombra tamanha a transparência azul da água, foram as sutilezas e rotinas dos habitantes da ilha – os sardos – o que nos surpreendeu. Era mais interessante observar um senhor de 86 anos na sua scooter surrada, pra não chamar de “motoca”, buscar um punhado de bomboloni (espécie de “sonho” de padaria, de sabor inigualável) para o desjejum, do que trombar com o Roberto Cavalli no seu iate estampado de oncinha em Porto Rotondo.

A Sicília é uma ilha colonizada por gregos, romanos, turcos, espanhóis, italianos, e cada parte se revela única. Uma mais grega, outra mais árabe, romana, fenícia... sem falar no clima e solo, que são muito distintos. Cada região se destaca por um tipo de cultura agrícola e por um sabor. Da cidade de Bronte vem o pistache, de Pacchino o tomate, o gamberone (camarão com sabor de trufa) vem de Mazzara del Valo, o chocolate de Modica, e assim segue a quase interminável lista.

 

Suculentos e variados tomates cultivados à beira-mar nos arredores da cidade de Pachino

 

“A Sicília é onde história, arte e tradições antiquíssimas se encontram, um lugar onde sabores simples e matérias-primas extraordinárias nos fazem viver experiências marcantes” nos contou a blogueira Patrícia Kalil, que vive na Sicília desde 2007.

Um produtor de azeites orgânicos cuja fazenda visitamos perto de Siracusa nos disse citando um poeta e ensaísta siciliano Leonardo Sciascia: “A Sicília toda é de uma dimensão fantástica, onírica. Como viver nela sem imaginação?”.  Tivemos que concordar com Dario Ficara, ali degustando, no meio de seu olival, o melhor azeite orgânico que já provamos em nossa vida, além das suculentas  peras e nectarinas, que a família cultiva para sua própria subsistência. Saímos de lá com uma pequena e consistente melancia orgânica, que virou parte do café da manhã no dia seguinte. E aqui vale dizer: muitas vezes perguntar se o alimento é orgânico (ou biológico, como o europeu denomina) pode soar ofensa pois é algo natural e familiar. Mas não nos fazemos de rogado: perguntamos de propósito, curiosos pela resposta.

 

Visita ao olival orgânico da Tenuta Cavasecca, onde tivemos uma degustação inesquecível de azeites com o proprietário Dario Ficara

 

Ao conversar com os ilhéus da Sardenha e Sicilia, percebemos que eles se referem ao resto do continente como Itália. De fato eles se consideram como um outro país. Notoriamente os hábitos são diferentes. Aqui a qualidade de vida é melhor. O tempo de almoço é 2 horas em comparação com os 30 minutos do norte da Itália. O mercado de trabalho feminino siciliano é menor (a sociedade é bem machista) e portanto, as mulheres cozinham mais; o almoço e jantar são mais caseiros e saudáveis. A mamma está sempre por perto para cuidar dos filhos casados (pois os homens costumam sair de casa só aos 40 anos), uma comida fresca, local e da estação. Descobrimos que isso faz toda diferença no estilo de vida e longevidade. Também notamos que se toma pouco leite, embora coma-se muito queijo, e de ovelha. Leite de vaca é comum apenas no capuccino. Ah, e ir ao fast food é coisa rara para uma família.

As duas ilhas, Sicília e Sardenha, são coisa de cinema e vale a pena revisitar “O Poderoso Chefão” para entender que não é força de expressão.

Palermo, capital da Sicília, sediou uma das cenas mais belas e dramáticas do último filme da trilogia, a morte da filha de Don Michael Corleone nas escadarias do Teatro Massimo. Quem era a filha do mafioso no filme? Sofia Coppola, a mesma que escreveu e dirigiu “Virgens Suicidas”, “Maria Antonieta”, “Encontros e Desencontros”. Palermo matou uma atriz e fez nascer uma diretora. E a uns bons 500km de Palermo, na parte leste da ilha, em dois pequenos burgos no alto mais distante de uma colina – Savocca e Forza D’Agro – é possível reviver cenas na memória como o clássico encontro de Don Corleone com seu primeiro e grande amor, Apolllonia, protagonizada por Simonetta Stefanelli.  Quando entramos no Bar Vitelli que se esmerou em manter ao máximo a cenografia original, o choro foi inevitável ao reimaginar a cena com Al Pacino pedindo a mão da moça. Ali por perto, provamos a típica pasta alla norma: molho pomodoro, berinjela, alho e basílico (manjericão), servido com queijo ralado de ricota curado de ovelha. Detalhe: para o sicilicano, berinjela tem o valor de um bom bife no prato, é uma proteína por excelência.

 

Savoca: imperdível para cinéfilos apaixonados pelo clásssico mafioso de Coppola. Aqui Al Pacino pediu a mão de seu grande amor, Apollonia

 

Voltando a Palermo (onde nossa viagem começou), surpreendeu-nos a cor terracota que acompanha o relevo e o clima árido, quase desértico. A comida por lá possui uma caseira rusticidade e o primeiro sabor foi de um arancini, bolinho de risoto com recheios diversos. Isso a caminho do restaurante 1 estrela Michelin “L’ ottava Nota”, recomendado por um local. Vale dizer que embora cheguemos sempre com uma lista previamente estudada de bons restaurantes, nunca deixamos de especular com os moradores locais sobre a comida, ruas, lojas, mercados de rua... Essa foi uma dessas dicas, onde fomos por causa de um risoto de limão com pasta de anchova e chocolate picante. A primeira pasta da viagem também não decepcionou, era uma carbonara autoral, com pistache e tartufo.

Ainda em Palermo, fizemos algumas lições de casa, como provar a autêntica caponata de berinjela, a super doce granita de limão siciliano (uma raspadinha de gelo e suco) e depois algo bem típico e local, Pani ca’meusa, um sanduiche de vísceras servido com queijo local. Mas sobretudo o Mercato San Lorenzo nos ganhou, um mercado de artigos orgânicos locais indicado pela jornalista Ailin Aleixo. Era a hora do aperitivo, e isso se respeita na Sicília. O cozinheiro pegou tudo fresco que estava disposto na bancada de gelo, filetou em nossa frente e temperou: polvo, peixe espada, anchova e camarões, apenas suco de limão (siciliano), sal e pimenta. Serviu com caponata e dois copos de vinho branco da uva Grillo local. E então o “mercato” se revelou: mais taças de vinho de uva Nero D’Avola, mais mortadela com pistache, mortadela com tartufo, salami picante, queijos variados como a ricota de ovelha, o queijo com zaferano, junto com um pão de cereal ancestral chamado tuminia.

A viagem poderia acabar ali mas não, de Palermo em diante, foi uma sucessão (ou melhor, profusão) de experiências e achados.

Da mesma forma que cada cidade responde por uma certa cultura agrícola, cada uma também oferece uma iguaria ou prato típico do qual se orgulha, como o cuscuz trapanese em Trapani, ou a bottarga (ovas) de atum com melão na pitoresca Marzamemi, o hambúrguer de cavalo ou asno em Catania. Não raras vezes os molhos levam o nome do lugar também (molho à ragusana, de Ragusa) e num único menu você pode se deparar com atum de Favignana, alcaparras e damasco de Palermo, anchova e queijo de ovelha de Trapani e pão de Agrigento.

Detalhar tudo isso é assunto para um livro (quem sabe), pois há histórias ainda por contar sobre o mercado de Ortigia e o melhor tiramisu em Siracusa, a mais saborosa cassata siciliana em Noto, a pizza indescritível na Rua Filomena em Catânia indicada pela blogueira Patricia Kalil; o inesperado canollo siciliano no vale dos templos em Agrigento, lugar de extrema felicidade para dois amantes da mitologia grega como nós; as vinícolas orgânicas aos pés do vulcão Etna onde um comedido wine tasting de 3 etapas virou de 11 etapas, com direito a visitar vinhedos inesperados. Sem contar as praias que são um destino à parte, como Giardini Naxos e Isola Bella, esta última à frente da majestosa e grega Taormina, cidade encrustada num penhasco. Suntuosa cidade que celebra o pôr do sol e a vida como se não houvesse amanhã, de preferência com um Etna Spritz do Belmond Grand Hotel Timeo.

Conversando com Patricia, a percepção sobre longevidade é nítida. Os sicilianos longevos não são infectados pelo estresse da vida moderna. Comem pouca carne e muitos vegetais. Vegetais sempre da estação e da localidade. Sempre com uma taça de vinho da uva local, azeite caseiro... e não comem muito, ao contrário do que pensamos. Por outro lado, comem fritura e seus doces são bem açucarados. Esse comportamento também se refletiu na Sardenha onde nos hospedamos na casa de uma família italiana e pudemos saborear na prática tudo isso.

A Sardenha é um mundo totalmente à parte da Sicília e da Itália, já dizia nossa amiga e chef Nádia Campeotto para quem a ilha “não se pode explicar, apenas sentir”, “é reservada, revela-se aos poucos”.

O que se come na Sardenha, fica na Sardenha. Não se come em outro lugar, levando à risca o que a estação dá de frutos. Uma passagem que denota bem isso foi a tentativa do Renato de cozinhar uma sopa de abóbora com gengibre. Não era época de abóbora, quase uma afronta questionar ao feirante local. E Renato teve que improvisar uma outra sopa.
Na Sardenha, passamos cinco dias na casa de uma família italiana que nos foi apresentada pela Nádia. Comemos, cozinhamos, bebemos, ao lado de pessoas fantásticas como as piemontesas Barbara e Marinella, observando a vida ativa das pessoas com cuidados domésticos e jardinagem. Fomos às feiras locais e nos chamou a atenção o fato de que o supermercado não é a primeira fonte de acesso a produtos, mas os pequenos estabelecimentos, os produtores artesanais que se especializaram naquele queijo, naquele pão e assim por diante.

Certamente em algum momento da sua vida você já ouviu a expressão “slow food”. A ela hoje se conectam outros conceitos como “mindful eating”, locavorismo, km zero, sazonalidade, todos eles presentes na Sardenha e na Sicília de forma natural e que provavelmente concede a essas culturas, dias e horas a mais de vida na Terra (com saúde, porque sem ela não tem graça).

É possível ter uma “zona azul” dentro de casa? Acreditamos que sim.

Por exemplo, simplifique a sua alimentação: se você não consegue plantar seu próprio alimento, priorize frutas, legumes e verduras orgânicas. Procure saber de onde vem; elas não nascem em supermercados, assine cestas orgânicas ou vá para a feira. Coma menos carne, coma mais vegetais. Seja ativo nas mínimas coisas, faça mais atividades rotineiras a pé. E na medida do possível, vá para a Sicília ou Sardenha, ou ambas como fizemos. Parte do seu coração ficará por lá, mas a experiência virá por inteiro. Com um nostálgico desejo de comer, viver e ser mais simples.

 
 
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Sempre deixe uma mala pronta em Berlim