Sempre deixe uma mala pronta em Berlim

O Chef Renato Caleffi e o publicitário Alexandre Carvalho contam sobre a alma inquieta da capital alemã, hoje o maior epicentro cultural da Europa, e porque você deve levar um look preto na mala.

 

JAJA: o apaixonante bar de vinhos naturais e de comidinhas orgânicas

 

I still keep a suitcase in Berlin”. Essa frase podia ser nossa, de David Bowie ou parte da letra de Zoo Station do U2. Podia ser também daquele seu amigo mais criativo, boêmio e desencanado. Mas é dela: Marlene Dietrich, filha nativa do espírito libertário berlinense, tão charmosa e sexy quanto o que acontece na capital alemã.
Uma vez dividida pelo muro, hoje Berlim é multiplicada por inesperados rumos. Gastronomia, arte, música, história, arquitetura, em cada um dos seus 96 distritos você esbarra com uma cidade múltipla, efervescente - uma imensa instalação cultural, disposta randomicamente em camadas e bairros: de cicatrizes da guerra, marcas de balas e fissuras em paredes de pontos turísticos, a vanguardas ainda por serem codificadas. Se você por exemplo ver alguém dançando pelado numa balada e ninguém se importar, taí um novo código cultural.
A seguir, contamos um pouco de nossa recente visita. Uma semana foi breve demais, todavia o suficiente para querer deixar, como Marlene, uma mochila de roupas em Berlim.
De preferência, no Regent Berlin ou na suite 410 do Adlon Kempinski, cuja vista do Portão de Brandemburgo desbanca, de cara, qualquer dúvida de que essa é a cidade para se estar, hoje, amanhã, e amanhã, e amanhã. Somos todos Bowie. E Marlene.

 
 

Das estrelas à sarjeta: comida e bebida sempre boa

Berlim reúne 25 estrelas Michelin em experiências gastronômicas, todas bem distintas, que priorizam o orgânico, o sazonal (era época de aspargos, imagina quantos tipos e pratos comemos), o sustentável e o local. Comida a mais natural e simples possível, com poucos ingredientes e técnicas nada rocambolescas. Do chef Sebastian Frank, eleito o melhor da Europa, com o seu Horvath à beira do belo canal Landwehr, ao inóspito Cookies Cream, cujo chef Stephan Hentschel perpetua por mais de uma década e com êxito o labor de elevar a comida vegetariana à alta gastronomia com criatividade e muito sabor (e consegue, por isso quando em Berlim, sempre voltamos lá).
Dica: baixe o aplicativo Open Table para reservar com antecedência e confira, além deles, restaurantes como o espetacular e sem show-off Einsunternull do talentoso Chef Andreas Rieger e seu sócio Ivo Ebert, e o memorável beef tartare e o schnitzel vienense do Borchardt.

Nas ruas, nas feiras, Berlim expressa uma identidade gastronômica tão vibrante e saborosa quanto divertida.

É o caso do Street Food Thursday que acontece no Markethalle 9, onde você prova toda sorte de comidas e bebidas, de ostras selvagens da Holanda a um autêntico currywurst (salsicha típica de Berlim servida com curry e ketchup). Aliás, para um currywurst orgânico, o Witty’s é parada obrigatória, ali sempre começamos nosso roteiro insano de comidas.
Outra deliciosa insanidade de rua é o Döner Kebap, sanduíche tipo “churrasquinho grego” que, segundo uma das lendas, foi inventado na década de 70 em Berlim pelo turco Kadir Nurman e hoje movimenta na mesma ordem de grandeza não só 3,5 bilhões de euros como também milhões de papilas gustativas, afinal todo mundo adora um döner.
Mas a cidade é suficientemente democrática, a ponto de você ter um supermercado vegano só pra você como a rede Veganz, um mercado zero-embalagem e zero-lixo como o Original Unverpackt, várias cadeias de mercados orgânicos, como o BIO, e até passeios guiados de comida local e vegetariana como a Fork & Walk Tours, que nos apresentou uma versão bem saborosa de currywurst veggie.

Valem inesquecíveis menções: a Tribeca Ice Cream de sorvetes plant-based, entre eles, pistache com lúcuma e o blue coconut, feito de água de coco e flor de hibisco; a pizza sem glúten do grego Simela; os vinhos naturais que bebemos na calçada do JAJA e os que compramos na Viniculture; o negroni do Bebel Bar para um sunset no rooftop do Hotel de Rome localizado na praça Bebel (a da histórica queima dos livros pelos nazistas em 1933); e, por amor a nós e ao seu paladar, reserve um café da manhã (se não estiver hospedado) no Regent ou no Adlon. É ida garantida para o céu a partir de 39 euros por pessoa, com ovos nas suas mais deliciosas versões, beneditinos, florentinos, pochê, mexidos e, claro... caviar.

Saiba que ao chegar em Berlim, logo no aeroporto, você pode comprar o seu welcome card do bureau Visit Berlin que dá acesso a transporte público e desconto em várias atrações. Item obrigatório.

Não faz sentido andar de taxi e sinceramente nem de Uber. Já uma bicicleta faz todo sentido. Alugamos uma toda feita de madeira de um designer grego e com ela fomos parar num lugar incrível, o Prinzessinnengarten. Trata-se de uma horta orgânica comunitária, cultivada por moradores do bairro. Os locais (e você também) podem ajudar no manejo, comprar verduras, frutas e até almoçar comida feita com ingredientes exclusivos da horta. Por isso, mais uma vez, explore a cidade. De bicicleta, metrô, ônibus e de trem como fez o roqueiro Iggy Pop. Quando compôs “The Passenger” ele andava no S-Bahn de Berlim.

 
 

A propósito, falando em música e um look preto...

Depois de visitar os remanescentes do muro a céu aberto na East Side Gallery e de atravessar o Checkpoint Charlie, o ponto de encontro e de turbulência da guerra fria dividindo oriente e ocidente; após desbravar a ilha dos museus (sim, uma ilha!), o maior legado de relíquicias egípcias como o busto de Nefertiti e de arte islâmica como o portal de Ishtar da Babilônia; depois das infinitas vezes que você admirará o Portão de Brandemburgo na romântica e neoclássica Praça Parisier, voltando das compras na loja de departamentos KADEWE e no shopping Bikini sempre incríveis; e necessariamente, logo após se perder entre os 2.711 blocos de concreto do Memorial do Holocausto, imerso na intranquilidade e angústia desses volumes preto acinzentados que ora se assemelham a um campo de concentração de túmulos, ora a um labirinto sufocante... Após tudo isso e mais um pouco, você chegará à Berghain.

 
 

É sexta-feira, mas um detalhe: a festa só acaba segunda de manhã.

Você saca da mala aquele look preto básico e surrado. Nada de perfume, nada de marca, esqueça o branding. Vá para a fila da meca mundial da cena eletrônica. Ali você não entra, você é escolhido. Conhecemos pessoas que tentaram entrar 4 vezes na mesma noite sem sucesso. Se tudo der certo, você terá a experiência mais antropológica da sua vida. Todos sem exceção, chefs de cozinha, artistas, músicos, jornalistas indicam a Berghain. Seu celular terá a câmera lacrada logo na entrada, mas o que os seus olhos e ouvidos viverão jamais sairão da retina e da memória.

 

O “carimbinho” da Berghain

 

Não foi à toa que David Bowie escolheu Berlim nos anos 70 e ali criou o hit Heroes. Nem tampouco porque o U2 gravou no mesmo estúdio Achtung Baby décadas depois. Como diz o politico francês Jack Lang, Paris é sempre Paris, já a capital alemã nunca é a mesma. É por essas e mil outras que, ao terminar este artigo, pode ter duas certezas: tudo já mudou em Berlim e, sim, deixe sempre uma mala por lá.

 
 
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